Quem é você? O que é você? Até onde vai o que é você e onde começa aquilo que você chama de "os outros"? Você já deve ter feito essas perguntas a si mesmo, não é? Sinto decepcioná-lo tão cedo, mas não há resposta para elas. Ou melhor: respostas há, mas assim, no plural. E nem todas dizem a mesma coisa. Falta consenso, e não foi por falta de gente inteligente e iluminada interessada no assunto. Buda, Freud, Jung e Sartre são algumas das cabeças que tentaram decifrar a si mesmas. E o que eles disseram, no que discordam e no que concordam é o que você vai ler a seguir.
Primeiro, vamos dar nomes aos bois. O ego é aquilo que você chama de "eu". A questão é: ele é você, mesmo? Sobre isso, há duas notícias, uma boa e uma ruim. A boa é que, ufa, nesse ponto há um certo consenso, sim.
A ruim é que o consenso mais complica do que explica. E o que vem a ser esse consenso? Bom, dizem os estudiosos que há mais em você do que o ego. Ou seja: você não é só esse que está lendo este texto, entendendo as palavras e pensando onde é que ele vai levar O ego pode ser o foco central da sua personalidade, como dizia Freud. Ou um monte de elementos agregados que parecem ser uma unidade, como querem os budistas. De qualquer forma, ele é só uma parte de você.
O ego é o centro da consciência inferior (diferente do Eu que é centro superior da consciência). O ego é a soma total dos pensamentos, idéias, sentimentos, lembranças e percepções sensoriais. É a parte mais superficial do indivíduo, a qual, modificada e tornada consciente, tem por funções a comprovação da realidade e a aceitação, mediante seleção e controle, de parte dos desejos e exigências procedentes dos impulsos que emanam do indivíduo. O ego serve para nos proteger na vida, mas deixá-lo livre pode trazer mais sofrimento do que felicidade.
Para saber como nasce o ego e como ele se desenvolve, observe um bebê recém-nascido. Ele apenas é - como uma flor, uma estrela ou um coral. Com o tempo, o bebê passa a existir - isto é, a se relacionar com o mundo que o rodeia e a se diferenciar dele. Com 2 anos, a criança já tem uma perfeita noção de que está separada do mundo próximo - da mãe, do pai, dos brinquedos, da roupa e da comida. Surge o "eu", a referência auto-centrada, egóica, em oposição aos "outros". Até aí, normal. Essa sensação de identidade é o que vai garantir sua sobrevivência. O ego é necessário e vital nesse período.
Assim a criança cresce, tendo a si mesma como referência, ou seja, buscando o que lhe dá prazer e tentando evitar o que a faz sofrer. É assim que ela saberá do que gosta e do que não gosta, aprenderá a optar e escreverá sua história. "O ego dá uma sensação de continuidade no tempo, de identidade autobiográfica", diz a pesquisadora e psicóloga paulista Márcia Tabone. Lembrando-nos do que fizemos ontem e do sentimento que aquilo causou é que escolhemos o que fazer hoje. Tudo isso para dizer, precariamente, aquilo que você experimenta o tempo todo. Afinal, estou falando de como é, para você, ser você. Ou, para mim, ser eu.
Então para que gastar papel e tinta para falar de algo que todos conhecemos? É que, mais cedo ou mais tarde, as escolhas pautadas no prazer começam a não satisfazer mais. Não basta a casa confortável, o carro veloz, o trabalho satisfatório, os filhos, a mulher ou o marido. Aflora um sentimento profundo de falta. É nessa fase, na crise existencial da meia-idade (que pode acontecer antes ou nunca), que surgem as perguntas "quem sou eu?", "o que estou fazendo neste mundo?", "para onde vou depois de morrer?". Começa uma busca, não mais restrita aos desejos do ego, mas para além dele.
É verdade que, nestes tempos de consumo desenfreado, em que todas as mensagens enfatizam o prazer que você tem que ter, com este ou aquele produto, esse questionamento não anda sendo levado a sério. Mas às vezes aparecem pistas de que você não é só esse você que pensa, se reconhece no espelho e faz escolhas. E não estou falando de ouvir vozes dentro da cabeça ou ter dupla personalidade. Nada disso. Trata-se de reconhecer, para começar, que nossos desejos e nossa identidade são dinâmicos. Eles mudam com o tempo, o lugar, as circunstâncias. Você nunca se pegou sentindo, pensando e agindo de forma diferente, às vezes até contraditória, quando está de férias, em um local desconhecido? É isso. Para explicar variações como essas, algumas tradições espirituais dizem que dentro de nós existe não apenas um "eu" sozinho, mas dezenas deles, que se revezam a cada minuto, nos desdizendo o tempo todo. E os estudiosos do assunto concordam.
Freud explica
Na psicologia ocidental, o ego vive na maior saia justa. A estrutura da personalidade, segundo Sigmund Freud, é dividida em três partes. Tem o ego, sobre o qual já falamos, mas também tem o id e o superego, que permanecem como a parte submersa de um iceberg.
O id é nossa fração mais instintiva, primitiva, e vive entre dois opostos. De um lado, o impulso para a vida, para o prazer. Do outro, o impulso para a morte, a destruição, a agressividade. Os filmes de Hollywood exploram ao máximo essa dualidade, com cenas de sexo e violência.
O superego é o freio a isso tudo e representa as forças de controle da sociedade. Segundo o médico vienense, ele também tem duas vozes:
o ego ideal, que é uma imagem projetada de nós mesmos, da maneira que gostaríamos de ser; e
a consciência, que é quem diz como fazer para alcançar o ego ideal (uma versão mais moderna do anjinho e do diabinho dentro de nós).
Ou seja, para Freud, o ego, esse que você chama de "eu", não é nada mais do que um funcionário pragmático com vários patrões. Por exemplo, se uma garotinha de 3 anos quiser comer doces que os pais proibiram, ela vai fazer isso quando eles não estiverem olhando - uma forma de o ego conciliar o que lhe pede o id (a busca de prazer) sem ferir o superego (o controle). E tudo isso ocorre aí dentro de você mesmo, embora você não ouça. "Pobre ego... serve a três mestres severos e faz o que pode para manter em harmonia suas solicitações e demandas. Não é à toa que ele falhe tanto nas suas tarefas", escreveu Freud.
O Inconsciente Coletivo
la pretre marie by rené magritte
Carl G. Jung, discípulo de Freud, trouxe a essa teoria uma novidade e tanto. Ele também diz que nós somos mais do que o ego. Mas, para ele, em vez de id e superego, o que carregamos dentro de nós é o Inconsciente Coletivo. Ou melhor: o Inconsciente Coletivo é que nos carrega dentro dele. E o que é o esse tal de Inconsciente Coletivo? É uma espécie de voz que vem do passado e que nos lembra quem somos e como chegamos aqui. "A psique não é de hoje", escreveu Jung. "Sua ancestralidade data de milhões de anos. A consciência individual é só a flor e o fruto de uma estação." Imagine-se como uma esfera. O ego, a parte que você chama de "eu", seria apenas o centro. O resto são experiências, valores, idéias e conceitos que compõem o Inconsciente Coletivo, patrimônio comum da humanidade inteira que se manifesta e se transmite pelos arquétipos (símbolos universais como o herói, a mãe, Deus, para ficar nos exemplos mais comuns). Os sonhos e as diversas formas de expressão artística dão pistas de como essas formas arquetípicas influenciam sua mente e sua vida.
Mais recentemente, merece destaque a psicologia transpessoal, uma vertente mais mística da ciência criada por Freud que fala das vivências não individuais - fora dos limites do ego - que a mente pode experimentar. "A psicologia transpessoal abandonou a abordagem estritamente racional e autobiográfica para uma visão mais abrangente, que leva em conta aspectos não individuais da mente e, sim, sua totalidade", afirma Márcia Tabone, psicóloga junguiana e transpessoal.
Visão Budista
Entre as filosofias que destacam o papel do ego está o budismo. Entre seus adeptos, diz-se que ego não é uma unidade, mas um aglomerado de elementos diferentes, que dão a ilusão de ser uma coisa só. Na verdade, para os budistas tudo é assim na vida. Pegue uma bicicleta, por exemplo. Ela é feita de elementos que não são uma bicicleta: o selim, o guidão, as rodas, aros e correntes, o pedal. Você pode até achar engraçado (eu acho, pelo menos), mas são elementos não-bicicleta que formam uma bicicleta. A bicicleta é um conceito abstrato. Dizer que aquele monte de coisas é uma bicicleta é só uma maneira de o cérebro facilitar seu trabalho. É como se na sua cabeça morasse um funcionário que etiquetasse com conceitos tudo o que você conhece: árvore, sol, lua, triste, alegre, bom, ruim. Ou seja, lidamos com uma realidade conceitual, diferente da realidade real. E a realidade conceitual é uma ilusão que nos impede de ver a realidade real, dizem os budistas. O mesmo acontece com o ego. Ele é um amontoado de características diferentes, que, juntas, parecem ser uma coisa só. O ego é um conceito.
Num de seus últimos ensinamentos, Buda diz para seus discípulos, estupefatos, que nada existe, que tudo é vazio. Ou, de outra forma, que tudo existe apenas virtualmente. Além disso, esse mundo virtual é um todo interdependente e que esse todo está em constante mudança. Em outras palavras: você não existe. Você é a revista que está lendo, você é o ar que está respirando, você é o chão que está pisando, você sou eu. Ver você separado do resto, como se você existisse por si só, e tentar frear o fluxo de mudanças que passa por você e que você traduz como dor ou prazer é desconhecer a realidade. O ego, essa noção que temos de nós mesmos separados do mundo, é uma ilusão. Por essa visão de mundo, tudo está interligado, como uma grande trama, uma rede. "Ferir uma pessoa é ferir a nós mesmos. Trazer alívio a uma pessoa é trazer alívio para todas as demais pessoas, inclusive a nós mesmos", escreveu o monge vietnamita Thich Nhat Nhat em seu livro Cultivando A mente de Amor.
O outro Eu
Então há mais de você em você mesmo. Mas como sentir ou viver esse você? Bom, aí também não há consenso. Para os budistas, a meditação é o caminho para entrar em contato com nossa verdadeira natureza, uma realidade que os cristãos chamam de natureza divina, ou mesmo, Deus. Não por acaso, Meister Eckart, um monge místico alemão que viveu no século 13, dizia que Deus morava dentro de nós, no fundo da alma, imerso em silêncio.
A psicologia transpessoal compartilha essa fé na meditação para a ampliação da consciência. Com a meditação, dizem seus adeptos, podemos ver os pensamentos e desejos fluírem como um rio, não estamos mais mergulhados neles. Provamos o espaço interior que existe além do ego, tocamos o que não é limitado pelo espaço e pelo tempo. "A transformação começa com uma experiência de unificação e liberdade em que compreendemos, mais clara e diretamente, a razão de nossa presença aqui na Terra", escreveu o pintor e pensador americano William Segal, em Respirar o Instante. "É uma tarefa sensível abrir-se para os padrões sempre mutáveis de nossa vida interior e exterior", diz ele. "Nessa altura, parte do ego se amplia e torna-se 'transpessoal', isto é, ele não estará mais restrito ao indivíduo. Surge uma identidade maior, que pode ser tocada na meditação, mas também em experiências místicas ou existenciais profundas", afirma Márcia Tabone.
Se de um lado o Oriente propõe a anulação do ego, no Ocidente há quem pregue que a resposta para as inquietações e a conquista do equilíbrio pessoal pode ser apenas a superação do ego infantil (quero, não quero, gosto, não gosto), com a possibilidade do nascimento de um humanismo individualista mais responsável. Se você gosta de grandes nomes para dar fé a teorias, essa tem a assinatura do mitólogo americano Joseph Campbell. "Existe essa terceira possibilidade, sim, que é encaminhar o ego na direção de uma maior consciência. Não em direção à sua anulação, mas no caminho do seu desenvolvimento", diz a professora Lia Diskin, da Associação Palas Athena, em São Paulo.
É o caminho do meio. Menos ego e mais compreensão.
->Fonte: Grupo de estudos Cinturao de Fótons fornecido pelo Dr. Bernardo de Gregório