As Bases da Evolução
Carlos Cardoso Aveline
É verdade que o documento tem sido mantido em um relativo esquecimento, como tantos outros que pertencem à sabedoria tradicional do Ocidente. Mas isso só aumenta o valor da sua descoberta pessoal por parte do leitor. Por outro lado, o significado desse texto brilha hoje dentro de um contexto maior, pelo qual as filosofias clássicas grega e romana vêm, desde o século 20, recuperando gradualmente a sua visibilidade e a sua popularidade.
Os Versos de Ouro expressam em poucas palavras e com uma clareza definitiva o compromisso de vida dos pitagóricos de todos os tempos. Sua mensagem será provavelmente tão atual dentro de 20 ou 25 séculos como era na Grécia e na Roma antigas. Por outro lado, durante a complexa transição atual para uma civilização planetária e democrática, os Versos apontam e sinalizam impecavelmente o caminho da auto-regeneração de cada indivíduo, que constitui a base fundamental para um renascimento coletivo, a médio prazo, da sabedoria no futuro.
Traduzo os Versos a partir do texto de Hierocles de Alexandria(1), com base na versão inglesa feita por N. Rowe em 1707, e adotada hoje pela maior parte dos estudiosos da tradição pitagórica.(2) Acrescento alguns poucos comentários e informações adicionais.
A seguir, um texto imortal, que se pode e deve reler muitas vezes ao longo do tempo. É um mapa, um guia e um tratado completo sobre a vida dos sábios.
Versos de Ouro
1. Honra em primeiro lugar os deuses imortais, como manda a lei.
Os deuses ou espíritos imortais são os grandes instrutores da humanidade. A lei referida aqui é a lei da evolução, que guia simultaneamente o cosmo e cada ser que vive nele.
2. A seguir, reverencia o juramento que fizeste.
No seu aspecto mais profundo, o juramento ou voto é simplesmente a decisão, tomada em nosso próprio coração, de seguir o caminho da sabedoria.
3. Depois os heróis ilustres, cheios de bondade e luz.
Os heróis ilustres são seres de alto grau de evolução, embora ainda não tenham chegado à completa libertação espiritual.
4. Homenageia então os espíritos terrestres, e manifesta por eles o devido respeito.
Os espíritos terrestres são os homens bons e sábios.
5. Honra em seguida a teus pais, e a todos os membros da tua família.
Cumprir os deveres familiares e ter um comportamento equilibrado no plano emocional garante uma boa parte da tranqüilidade básica necessária à busca da sabedoria divina. Mas o desapego é igualmente importante.
6. Entre todos os outros, escolhe como amigo aquele que se distingue por sua virtude.
Na sua obra intitulada “Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates”, Xenofonte conta que Sócrates aconselhou a Cristóbulo: “Fica tranqüilo, procura fazer-te bom e, uma vez bom, põe-te à caça dos corações virtuosos.”(3)
7. Aproveita sempre tuas suaves exortações, e segue o exemplo das tuas ações virtuosas e úteis.
Os pitagóricos buscam ensinar pelo exemplo.
8. Mas evita, tanto quanto possível, afastar-te do teu amigo por um pequeno erro.
9. Porque a força é limitada pela necessidade.
10. Lembra que todas essas coisas são como eu te disse.
11. Mas acostuma-te a vencer essas paixões: primeiro, a gula; depois a preguiça, a luxúria e a raiva.
Segundo Hierocles, “essas são as paixões que devemos restringir e manter dominadas, para que elas não possam descompor e obstruir a nossa razão.”
12. Nunca faças junto com outros, nem sozinho, algo que te dê vergonha.
13. E, sobretudo, respeita a ti mesmo.
14. Pratica a justiça com teus atos e com tuas palavras.
15. E estabelece o hábito de nunca agir impensadamente.
16. Mas lembra sempre um fato, o de que o destino estabelece que a morte virá a todos;
17. E que as coisas boas do mundo são incertas, e, assim como podem ser conquistadas, podem ser perdidas.
18. Suporta com paciência e sem murmúrios a tua parte, seja qual for,
19. Dos sofrimentos que o destino determinado pelos deuses lança sobre os seres humanos.
20. Mas esforça-te por aliviar a tua dor no que for possível,
21. E lembra que o destino não manda muitas desgraças aos bons.
22. O que as pessoas pensam e dizem varia muito; agora é algo bom, em seguida é algo mau.
23. Portanto, não aceites cegamente o que ouves, nem o rejeites de modo precipitado.
24. Mas, se forem ditas falsidades, retrocede suavemente e arma-te de paciência.
25. Cumpre fielmente, em todas as ocasiões, o que te digo agora:
26. Não deixes que ninguém, com palavras ou atos,
27. Te leve a fazer ou dizer o que não é melhor para ti.
28. Pensa e delibera antes de agir, para que não cometas ações tolas,
29. Porque é próprio de um homem miserável agir e falar impensadamente.
30. Mas faze aquilo que não te trará aflições mais tarde, e que não te causará arrependimento.
31. Não faças nada que sejas incapaz de entender,
32. Mas aprende tudo o que for necessário aprender, e desse modo terás uma vida feliz.
33. Não esqueças de modo algum a saúde do corpo,
34. Mas dá a ele alimento com moderação, o exercício necessário e também repouso à tua mente.
35. O que quero indicar com a palavra moderação é aquilo que não te provocará mal-estar.
36. Acostuma-te a uma vida decente e pura, sem luxúria.
37. Evita todas as coisas que causarão inveja.
38. E não cometas exageros no uso de bens materiais. Vive como alguém que sabe o que é honrado e decente.
39. Não ajas movido pela cobiça ou avareza. É excelente usar a justa medida em todas essas coisas.
40. Faze apenas as coisas que não podem ferir-te, e decide antes de fazê-las.
41. Ao deitares, nunca deixes que o sono se aproxime dos teus olhos cansados,
42. Enquanto não examinares com a tua consciência mais elevada todas as tuas ações do dia.
43. Pergunta: “Em que errei? Em que agi corretamente? Que dever deixei de cumprir?”
44. Recrimina-te pelos teus erros, alegra-te pelos acertos.
Cada dia da vida é a imagem em miniatura de uma vida inteira. Pela manhã cedo temos a vitalidade de uma criança, e à noite sentimos o cansaço de alguém que é muito velho. A revisão pitagórica nos permite avaliar o carma plantado e o carma colhido durante aquele dia. Desse modo podemos dormir mais completa e profundamente, e com a consciência em paz. O estudante da sabedoria esotérica fica, assim, livre para o aprendizado que ocorre durante o sono do seu corpo físico. Porque, como se sabe, certos sonhos podem ser fonte importante de ensinamento espiritual.
45. Pratica integralmente todas essas recomendações. Medita bem nelas. Tu deves amá-las de todo o coração.
46. São elas que te colocarão no caminho da Virtude Divina,
O termo virtude – areté, em grego – não é algo a ser cultivado superficial ou artificialmente. Areté, explica Platão, é aquela atividade própria e específica de uma determinada coisa ou pessoa. A virtude de uma bicicleta é o movimento, a virtude de um peixe é nadar, e a virtude de um médico é curar. Assim, também, a virtude divina da alma humana é uma característica e uma vocação essencial da parte superior e racional do indivíduo.
47. Eu o juro por aquele que transmitiu às nossas almas o Quaternário Sagrado,
48. A fonte da Natureza, cuja evolução é eterna.
O Quaternário Sagrado é a tétrade ou tetraktys (em grego), o quatro sagrado pelo qual juravam os pitagóricos. “Aquele que transmitiu o Quaternário” é o Mestre, cujo nome se evitava pronunciar em vão.
Geometricamente, a apresentação da tétrade sagrada dos pitagóricos é a seguinte:•A primeira linha da figura representa a unidade e o divino. A segunda linha, a dualidade e a materialidade. A terceira linha significa a tríade, o eu imortal em evolução, que reúne em si a unidade e a dualidade. E a quarta linha simboliza a tétrade ou perfeição, que expressa a vacuidade e a plenitude. Presente na figura está também a década, ou dez, a soma total dos pontos, que simboliza o cosmo.
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49. Nunca comeces uma tarefa antes de pedir a bênção e a ajuda dos deuses.
50. Quando fizeres de tudo isso um hábito,
51. Conhecerás a natureza dos deuses imortais e dos homens,
52. Verás até que ponto vai a diversidade entre os seres, e também aquilo que os reúne em si e os coloca em unidade uns com os outros.
53. Verás então, de acordo com a justiça, que a substância do universo é a mesma em todas as coisas.
“De acordo com a justiça”, isto é, “na medida dos teus méritos”. A palavra justiça, neste caso, significa a lei do carma.
54. Desse modo não desejarás o que não deves desejar, e nada nesse mundo será desconhecido de ti.
A felicidade não consiste em ter o que se deseja, mas em não desejar o que não é adequado. Os desejos pessoais distorcem a realidade e mantêm o ser humano na ignorância.
55. Perceberás também que os homens lançam sobre si mesmos suas próprias desgraças, voluntariamente e por sua livre escolha.
56. Como são infelizes! Não vêem, nem compreendem que o bem deles está a seu lado.
57. Poucos sabem como libertar-se dos seus sofrimentos.
58. Esse é o peso do destino que cega a humanidade.
O peso do destino é o aspecto negativo do carma humano; a carga acumulada de erros cometidos pela humanidade.
59. Como grandes cilindros, os seres humanos rolam para lá e para cá, sempre oprimidos por sofrimentos intermináveis,
60. Porque são acompanhados por uma companheira sombria, a desunião fatal entre eles, que os lança para cima e para baixo sem que percebam.
Um ensinamento central da tradição esotérica é o da unidade e da fraternidade universal de todos os seres. É o primeiro passo para perceber a realidade da vida.
61. Trata, discretamente, de nunca despertar desarmonia, mas foge dela!
É oportuno destacar que há pelo menos dois tipos de união ou harmonia. Existe uma harmonia aparente, mantida como fachada para evitar e reprimir a liberdade e a independência natural dos seres; e há outra harmonia interior, de coração, que é capaz de identificar, respeitar e preservar as diferenças naturais entre os seres.
62. Oh, Grande Zeus(4), pai dos homens, você os livraria de todos os males que os oprimem, se você mostrasse a cada um o Espírito que é seu guia.
O Espírito que guia cada ser humano é o seu próprio eu imortal, também chamado de mônada, atma, ou atma-buddhi.
63. Porém, tu não deves ter medo, porque os homens pertencem a uma raça divina,
De fato, tanto a origem como o destino da nossa humanidade são divinos. Luz no Caminho, um clássico da literatura esotérica, afirma: “A alma humana é imortal e o seu futuro é o futuro de algo cujo crescimento e esplendor não têm limites.”(5)
64. E a natureza sagrada revelará a eles os mistérios mais ocultos.
65. Se ela comunicar a ti os seus segredos, colocarás em prática facilmente todas as coisas que te recomendo.
Quando a disciplina espiritual nos parece difícil, isso ocorre porque ainda não compreendemos bem a realidade da vida. A verdade é que a ausência de disciplina traz dificuldades muito maiores.
66. E ao curar a tua alma a libertarás de todos esses males e sofrimentos.
67. Mas evita as comidas pouco recomendáveis para a purificação
68. E a libertação da alma; usa um claro discernimento em relação a elas, e examina bem todas as coisas,
69. Buscando sempre guiar-te pela compreensão divina que tudo deveria orientar.
70. Assim, quando abandonares teu corpo físico e te elevares no mais puro éter,
O éter é um dos níveis inferiores do akasha, a substância primordial ou luz astral. No contexto específico do verso 70, éter significa o mundo da luz astral, as condições da vida após a morte, que são determinadas pelo carma produzido em vida.
71. Serás divino, imortal, incorruptível, e a morte não terá mais poder sobre ti.
Este verso final simboliza não só o momento em que se alcança a sabedoria em termos gerais, mas também a conquista da libertação espiritual – a condição de um mahatma, um buda, um arhat, um rishi ou imortal. Nesse estágio a alma conhece o nirvana e não tem mais necessidade de renascer.
Notas
(1) Hierocles de Alexandria, filósofo neoplatônico e neopitagórico do século 5 da era cristã, foi aluno de Plutarco de Atenas antes de começar a ensinar filosofia em Alexandria.
(2) Entre as principais versões disponíveis dos Versos estão: Commentaries of Hierocles on the Golden Verses of Pythagoras, Theosophical Publishing House, Londres, 1971; e The Golden Verses of Pythagoras, de Fabre d’Olivet, Samuel Weiser, Inc., Nova York, 1975.
(3) Sócrates, coleção “Os Pensadores”, Nova Cultural, Círculo do Livro, 1996, ver capítulo seis do livro II, pp. 105-108.
(4) Zeus, o deus grego que chefiava o Olimpo. No original em inglês temos Júpiter, o nome romano equivalente ao termo grego Zeus.
(5) Luz no Caminho, de Mabel Collins, Ed. Teosófica, edição de bolso, 111 pp. Ver p. 67.
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